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Dançando sobre o abismo
Dançando sobre o abismo

O amendoim movia-se lentamente. Exasperantemente lento. Através do áspero caminho, se é que algum havia. Um minúsculo graveto, um grão maior de areia, uma simples folha de capim, apresentavam-se como obstáculos formidáveis. As formigas, contudo, não desistiam. Agitavam-se muito, formigando para lá e para cá. De alguma maneira a massa de insetos progredia e a semente ia sendo levada na direção do ninho.

Antevi um ponto crítico. Uma folha caída sobre dois gravetos cruzados, bem no meio do caminho, configuravam uma armadilha que levaria as formigas a um beco sem saída. Lentamente o cortejo se arrastou em direção a essa armadilha. Como eu previra, as formigas, minusculizadas diante do fardo e das irregularidades do terreno, encontraram nesse ponto uma barreira que a mim se apresentava como intransponível. Depois de um bom tempo carregando a enorme semente de um lado para outro, elas recuaram  um pouco. Encontraram um ponto sem a folha e então tentaram passar por cima de um dos gravetos, mas, redondo e denso, o amendoim sempre rolava de volta.

Minha aflição aumentava. Sentia ímpetos quase irrefreáveis de ajudar os laboriosos seres, mas outra parte de mim sabia que isso não seria necessário. Na verdade não seria nem conveniente. Elas haviam arrastado aquele amendoim por uma distância dezenas de vezes maior que a que restava para a entrada do formigueiro. Sabe-se lá que história circulava entre elas. Talvez fosse um feito a ser comemorado por muitos anos formiculares.Talvez a tarefa resultasse num aperfeiçoamento da equipe ou mesmo do formigueiro. Talvez fosse mesmo uma atividade quase corriqueira e não essa tarefa hercúlea que me dava tanta aflição. Não, eu não iria ajudá-las.

Minha curiosidade sobre o resultado da empreitada me fez ficar muito tempo ali ao lado da entrada da toca, observando o trabalho frenético. Dizem que o brasileiro, quando percebe que alguém ao lado está trabalhando com afinco, pára para olhar. Será que era essa curiosidade a minha?

Depois de muitas tentativas, vi algumas formigas limpando o caminho, retirando pequenos blocos de terra e restos de plantas. O amendoim finalmente foi içado, passando por cima de um dos gravetos; depois foi arrastado sob a folha e levado ao próximo e terrível obstáculo: o próprio cone do formigueiro. Ali as formigas não conseguiam subir pois a inclinação e a terra solta as faziam escorregar. Várias vezes a semente escapou e rolou morro abaixo. Mas suas captoras não desistiam facilmente.

O conflito entre a ânsia de ajudar e a racionalização que me impedia de fazê-lo explodiu novamente em meu espaço mental. Faltava tão pouco para elas. Só uma ajudinha. Que mal ia fazer?

Vi passarem outros grupos com uma pequena mariposa, um grilo. Todas foram rapidamente para o ninho. Mas o pesado amendoim era uma carga e tanto. Num dado momento um outro grupo, carregando uma minúscula baga preta, juntou-se ao grupo do amendoim. Por alguns momentos estabeleceu-se a confusão, se é que essa frase pode ter algum sentido pois o que se estabelece é a ordem, não o seu contrário. Na verdade percebo agora porque escrevi assim. Penso nas minhas próprias idéias formigando aos borbotões e de alguma forma levando este texto para algum lugar. Aonde será que quero chegar com essa história? Sera que escrever também é assim uma abertura de vias, uma descoberta de caminhos, com seus avanços e retrocessos?

De uma maneira que não pude apreender, as formigas acabaram por se entender e o grupo da baga seguiu em frente, até que se deparou com o cone do formigueiro. Esse grupo estava tendo os mesmos problemas de escalada, apesar da baga ser muito menor e mais leve que o amendoim. Depois de alguns minutos tentando, elas encontraram um gravetinho fino que subia em direção ao cone. Apoiadas nesse graveto, conseguiram ascender com facilidade. Logo depois as outras formigas carregavam o amendoim cone acima. De alguma maneira seu comportamento coletivo demonstrava inteligência, do tipo que prefere ir improvisando e, através de erros e acertos, vai avançando. Considerando o número de vezes que já rescrevi o texto, não vejo muita diferença do meu conjunto de neurônios para uma colônia de formigas.

Eu já estava comemorando o sucesso quando o amendoim rolou tudo de volta. Mais uma tentativa e lá ia a semente de volta. Eu discutia comigo mesmo, refreando a vontade de ajudar. Sabia que que se o fizesse, iria apenas impedir que importante técnica de carregar amendoins fosse praticada... A essa altura você deve estar me achando um cara complicado demais, mas isso é porque não está diante da situação em que me encontrava. E da qual ainda não disse quase nada.

Algumas lentas e demoradas tentativas depois, o grupo desistiu do graveto e desviou-se para o lado. Finalmente encontrou um caminho que contornava o cone pelo lado direito e saía na parte superior do terreno, bastante inclinado. Por essa via seria mais fácil pois a inclinação era menor e ela iria encontrar o cone de terra solta praticamente já na sua parte superior. Não sei nem se sabiam disso - para mim estavam apenas fazendo mais uma tentativa.

Colado ao formigueiro no lado que chamei de direito, o paredão de rocha quase vertical erguia-se a uma altura infinita, para as formigas, e desmesurada, para mim. Uma rocha bastante áspera e com saliências e reentrâncias numa disposição aparentemente aleatória, incompreensível. Em algum ponto no meio da parede movia-se um pequeno ponto vermelho e branco. Lentamente, tateando com todos os membros, ascendia rumo ao topo. Via minha filha pendurada por agarras invisíveis, buscando seu caminho, descobrindo uma via, concentrada para não entrar num ponto sem retorno, todas suas fibras cooperando para não cair. 

A angústia, que misturava uma sensação de vertigem ao terror de perdê-la, tornava-se algo físico que se traduzia no meu corpo como uma sensação de sufocamento, peso e uma dor difusa no peito. A gravidade me estatelava no chão. Mesmo que todo meu ser gritasse para que eu ajudasse, simplesmente não poderia fazê-lo. Ela já não era mais minha garotinha que dependia de mim, mas uma pessoa admirável que tinha muito mais recursos que eu para fazer o que fazia. Depois de muitos meses no ginásio de escalada essa era sua estréia na rocha.

Eu acompanhava a ação como que ligado por um fio invisível e sentia a cada movimento a dificuldade de coordenar os movimentos e encaixá-los na rocha, ao mesmo tempo controlando o medo de estar a dezenas de metros do chão, apoiada apenas em improváveis irregularidades da superfície. Não, não era nada fácil. Não era como o ambiente controlado e com paredes baixas do ginásio. Aqui o desafio maior talvez fosse exatamente a sensação quase insuportável de exposição e o controle mental necessário para manejar os conflitos entre o medo irrespirável e a confiança nos recursos disponíveis. Para ela, recursos aperfeiçoados por intensos treinamentos, conversas, ensinamentos e esforços, lentamente incorporados ao comportamento e ao próprio pensamento. Assim como em algum momento temos que sair da escola e ir para a vida, a rocha assustadora oferecia a oportunidade de sucesso e o risco real de fracasso. Mas era uma promessa de liberdade. Melhor dizendo, de mais um grau de liberdade, já que liberdade em si é apenas um conceito abstrato.

O fato de estar com a segurança garantida por uma corda em nada diminuía o medo e a conquista. Apenas quem enfrentou a vida de frente, com toda sua beleza e perigo, pode compreender o que é construir seu caminho, tateando e pendurado no abismo. Pode regozijar-se com euforia incontida ao atingir o objetivo, seja um cume ou uma simples parada na parede. Pode rememorar o quando foi difícil o caminho e maravilhar-se com os progressos realizados, com as capacidades já adquiridas. Pode relembrar ou até reproduzir os instantes de concentração intensa, quase um transe, que faz do corpo, mente e rocha-mundo uma coisa só, momentos em que a fluidez, elegância e eficiência superam tudo o que vivemos no cotidiano.

Minha filha observava a paisagem magnífica do alto do rochedo. Conseguira vencer o desafio, que para mim parecia impossível. Não o fizera sozinha. Os amigos presentes deram demonstrações de habilidade e de humor em doses incomuns. Um excelente instrutor liderara a subida e a encorajara. Eu ouvia suas vozes que vinham lá do alto do penhasco. Saboreavam esse momento único. Ela demorava-se a descer. Não tendo o que fazer, eu aguardava o seu retorno na base da enorme parede.

Finalmente a corda foi preparada e o longo rapel a trouxe de volta. Corri para abraçá-la. Depois das festas, foi pegar minhas coisas e presenciei o preciso momento em que o amendoim rolava para dentro do formigueiro. Olhei a paisagem que se estendia pelo vale aos pés da vertente. Nesse momento minhas aflições se foram, voando pela paisagem infinita. Senti que nossas vidas adquiriam um novo sentido.

Minha filha é a Juliana. O instrutor é o Gustavo e os amigos são a Renata e o Varanda.

Augusto Froehlich