Comecei a subir o morro. No início a estrada é uma subida forte, com trechos pedregosos, mas relativamente fácil. Meus amigos vinham logo atrás e eu vinha subindo tranquilo. Até que cheguei na bifurcação que liga a estrada “normal” com aquela que sobe o morro, utilizada apenas por quem vai decolar com asa ou parapente. Ou então por alguns raros e intrépidos que querem extasiar-se com a vista ou namorar nas estrelas.
Ali na encruzilhada, na pista da direita, a subida real começava. Real o cacete, estúpida! Se você já pedalou pelas ruas de São Paulo e já escalou a rua Ministro Rocha Azevedo ou a Avenida Senador José Ermírio de Moraes em direção ao Alto da Cantareira, vou jogar uns dados para que você possa ter uma idéia do que estou falando. A segunda via era antigamente conhecida como Estrada do Juqueri e leva a um famoso manicômio de Sampa que tem o mesmo nome. Escalar essa avenida, com cerca de 390 metros de desnível, é obra de doido mesmo. Ela tem trechos com inclinações que chegam a superar os 16%, tendo no geral uma inclinação de 14%. Já a rua Ministro Rocha Azevedo tem uma inclinação geral de cerca de 12%, com um trecho de 15%, embora seja bem mais curta, com cerca de 500 metros de extensão e 60 metros de desnível.
Estávamos enfrentando ali, na terra e pedras, inclinações de até mais de 20%. Dois km de subida com inclinação geral de 16%. Fui escalando a coisa a uma velocidade de uma pessoa caminhando normalmente, mas com o coração saltando na boca e os bofes bafejando borrifos de baba. O suor escorria pela testa, misturava-se ao protetor solar e punha os olhos a arder, deixando-os vermelhos e
as pálpebras inchadas. A rampa final, que leva à para a primeira plataforma de decolagem, foi vencida empurrando a bike. Não dava mais para pedalar!
Depois de ficar por ali apreciando a vista e recuperando a capacidade física, finalmente meus amigos chegaram. Ao contrário de mim, ficaram fotografando e curtindo a vista enquanto subiam e descansavam. Gente mais sensata, quem sabe. Mas não aos olhos de um outro amigo que subia encarapitado na caçamba de uma picape com sua bike de downhill. Ele não se conformava com a cena deplorável de quatro ciclistas empurrando lentamente suas bikes morro acima. Gritava:
– Tem que pedalar seus doidos! Seus malucos! Tem que se ferrar! Seus loucos! E mais outros incentivos carinhosos e impublicáveis.
Faltava ainda uma rampa inclinadíssima para o topo do morro. Pedalei até quase chegar lá, mas um carro descendo acabou por me desestabilizar e terminei empurrando. Merda, toda a vez que isso acontece eu fico encanado enquanto não voltar e resolver o desafio. Por enquanto, 1x0 para a parede.
Lá no final da estrada, o pico era um Juqueri. Éramos, porém, estranhos naquele ninho de insanos, nós mesmo doidos, mas à nossa maneira. Minha aparência era certamente a de um lunático galopante. Suado, inchado, enrubescido, desgrenhado e zoado. O barato é que estávamos no meio de aves de rapina envolvidas num irado festim de caça que, de quando em quando, mergulhavam por um buraco no meio da mata e desapareciam com velocidade assustadora.
A galera ali estava toda equipada com armaduras e capacetes fechados. Cavalgava bikes pesadas, fortes, com jeito de malvadas e, ao mesmo tempo, macias e controláveis. Uma cena quase medieval, misturando altíssima tecnologia com instintos ancestrais de agressão e arte, tudo embalado numa farta festa de cores. Por um momento achei que a subida final me fritara os miolos
Conversávamos um pouco com nosso queridíssimo amigo que tanto nos incentivara minutos atrás. Sua opinião era categórica:
– Desçam pela pista da prova. É muito mais seguro que voltar por essa estrada. O máximo que pode acontecer é vocês descerem a pé.
A mim parecia meio insano. Mas um dos meus amigos já estava decidido a encarar o buraco, mesmo sem ter trazido o seu equipamento de proteção e capacete integral. De repente, estava todo mundo topando a balada.
– Então está certo, vamos lá, disse eu, procurando demonstrar atitude. Na verdade acho que estava meio tonto por causa da subida. Não estava defecando de medo, o que me surpreende até agora.
Entrei logo em segundo lugar na trilha e mergulhei naquele poço escuro da mata. Com minha bike totalmente configurada para trilhas, no mais autêntico estilo “croscauntreiro” (epíteto provocativo dado pelos “daunrileiros”). No início estava até indo bem. Devagar... Lá no meio da mata a inclinação estava tão forte e a terra tão solta e as raízes tão grossas e os degraus tão altos e as curvas tão fechadas e as árvores tão próximas, que refuguei saltar. Usava pedal tipo eggbeater, composto de quatro alças de metal entrelaçadas, exatamente como um batedor de ovos. Ou você desce com os pés encaixados, ou não consegue ficar em cima da bike. Então amarelei ali e desci um bom trecho no pé mesmo, escorregando com minha sapatilha de sola lisa. Logo que deu para pedalar, montei na bike e completei o percurso, mas sem encarar o drop final.
É claro que teve um rola. No meio da mata, freei tarde e a roda da frente passou a fita de demarcação caindo num buraco na encosta do morro. Caí de costas sobre um monte de galhos cortados, felizmente nenhum deles em posição ereta, o que poderia ter furado alguma coisa ou até causar perda de virgindade... Na verdade esses tocos, restos de arbustos retirados para abrir a trilha, constituíam um dos grandes desafios para quem descia ou pior, caía.
Essa trilha é travadíssima, traçada num ziquezague inclinado e de curvas muito fechadas. Não sei se estará aberta outros dias pois termina em terras particulares. Nesse dia a terra estava muito solta por causa das bikes descendo, sempre com o freio traseiro travado. Segundo meu amigo que estava participando, era só enrolar a alavanca do freio com um elástico e descer controlando a velocidade com o dianteiro... Para se ter uma idéia, a pista desce o morro na metade da distância da subida, quer dizer, sua inclinação é o dobro ou até mais. Sacou? Se não tivesse a mata ali, vendo o precipício em toda sua verdadeira, por assim dizer, precipitação, eu teria com certeza deixado de tentar acompanhar as águias no seu mergulho quase sinistro. Cara, não estou exagerando não. Pára com isso, bota fé em mim! O negócio é lôco, meu.
Alguns trechos ficaram famosos entre os participantes, como a passagem entre duas árvores cuja distância era praticamente igual à largura dos guidões. No final elas estavam descascadas, segundo um dos competidores. Casca de árvore, nada, casca mesmo era a pista. No trecho final, fora da mata, havia uma curva feita na terra solta, com inclinação completamente invertida (off camber) e acompanhando a encosta do morro. Muitos cairam ali, mesmo pessoal da categoria elite. Para mim era um dos pontos mais difíceis. O drop final, que muitos emendavam num salto belíssimo, terminava com uma forte curva. A árvore ali na frente recebeu alguns carinhos...
Durante minha descida, tive várias vezes que me meter no mato para não atrapalhar a galera que estava treinando. No total demorei uns 13 minutos, contanto com as escondidas no mato. O campeão da elite (Leandro “Cabelinho’), na prova do dia seguinte, iria fazer o percurso em 3’24”, um tempo absurdo. Não consigo nem imaginar a perícia necessária para essa proeza. O cara é fera mesmo. Balé? Circo? Que nada, downhill na veia, véio!!!
A experiência de descer uma pista profissional foi – e está sendo – fantástica. Vai ficar na minha memória e vai servir para que eu possa ainda mais admirar os malucos despencando com sua combinação incrível de agressividade e controle, intrepidez e habilidade, loucura e estratégia. Quem pensa que é só doideira, não entendeu nada. Quem pensa que é só treinamento e estratégia também não chegou lá. Esses caras são artistas e guerreiros trabalhando no limite. Só vence quem tem a combinação certa de todas essas coisas.
Ah! E entender o que os caras fazem também dá prazer e adrenalina. Meu amigo tinha razão descer pela pista foi muito mais seguro... e muito, muito, muito mais divertido. Se você ainda não tentou descer uma pista de downhill pelo menos uma vez na vida, está perdendo seu precioso tempo. Se nem ao menos foi assistir a provas de ciclismo extremo, demorou!
Augusto Froehlic